Interpretação das canções de Dorival Caymmi
Segredos da Bahia de Dorival Caymmi
Rede balança a pena do
pintor-poeta. Mãos do barro esculpidas n’água. Pedras de areia brincam pele
bronzeada. Brincos e badulaques. O mar espreguiça em peixes verdes verdades
vidas levadas trazidas pela correnteza, na harmonia Dorival Caymmi (30/04/1914
– 16/08/2008).
Marina (samba-canção,
1947) – Dorival Caymmi
“Marina” conta a história do homem fragilizado diante da força sedutora da sua
mulher. Inspirada num mau trato do filho pequeno de Dorival, o que viria a se
tornar o cantor e compositor Dori Caymmi, então com três anos idade, que
repetia ‘ to de mal com você’, quando contrariado. E foi nesse pequeno gesto
infantil que Dorival percebeu que o homem contrariado tende a abolir as
questões da maturidade, razão pela qual os romances são sempre difíceis,
conduzidos pela volúvel emoção. Fora isso, a canção lançada em 1947 por quatro
cantores diferentes, (Dick Farney, Francisco Alves, Nelson Gonçalves, e o
próprio autor), rompeu com uma lenda da indústria fonográfica e marcou um
costume feminino da época que veio a se consolidar nas décadas seguintes: o de
se maquiarem. “Marina morena, Marina, você se pintou…”. O veredito de Dorival
Caymmi contra esse tipo de artifício revela sua profunda ligação com a
natureza, com as coisas em seu estado natural e integrado: “Marina, você já é
bonita com o que Deus lhe deu…”
O Samba da Minha Terra
(samba, 1940) – Dorival Caymmi
“O Samba da Minha Terra”, é a declaração de amor de Dorival Caymmi às suas
raízes musicais e terrenas. Confundem-se Bahia e samba na trajetória desse
fruto da boa terra que chegou ainda moço ao Rio de Janeiro, e no mesmo ano da
composição, em 1940, jurou novo amor eterno: à cantora Stela Maris, sua
companheira durante toda vida. O verso em forma de ditado popularizou-se tal
qual algo que se prega à nossa personalidade e que se colhe no berço, nos
primeiros passos dados, em terra firme ou alto mar: “Quem não gosta de samba,
bom sujeito não é, é ruim da cabeça, ou doente do pé!”. Foi lançada pelo Bando
da Lua como a última gravação do grupo em terras brasileiras.
Só Louco (samba-canção, 1956) – Dorival Caymmi
“Só Louco” encerra quaisquer racionalidade sobre questões impalpáveis ligadas
ao momento mágico do amor. Nada baseado em pensamentos bem articulados pode
modificar o curso dessa direção quando o barco deu sua partida, e ele só
aportará mesmo após tempestades. O único momento de se compreender essa loucura
é durante sua realização, e ele imediatamente nos escapa, quando menos
esperamos. O samba-canção lançado pelo próprio Dorival Caymmi em 1956 ganhou
regravação primorosa de Gal Costa, em 1976. “Só louco, amou, como eu amei,
só louco, quis o bem que eu quis. Ah insensato coração, porque me fizeste
sofrer, se de amor para entender, é preciso amar, por que…”
Dora (frevo-samba-canção, 1945) – Dorival Caymmi
“Dora” é o encantamento com o inatingível. Um samba-canção com introdução de frevo que alude à festa onde
Dorival Caymmi avistou a tal rainha. Também homenagem ao Recife, presente no
charme dançante da morena. A mudança de tom na melodia para incorporar a
chegada suntuosa da Banda Militar e seus clarins respalda a inventividade
musical de um músico que nunca estudou música, contendo-a em si. O chamado pela
moça ao final da letra pressagia seu distanciamento progressivo: “Ô Dora…Ô
Dora…” Lançada em 1945 por Caymmi e regravada por Nelson Gonçalves, Gal Costa,
e muitos outros: “Dora, rainha do frevo e do maracatu, ninguém requebra nem
dança melhor do que tu…”
João Valentão (samba,
1953) – Dorival Caymmi
A fachada rústica pode conter um coração sensível. É essa a constatação dos que
ouvem a rotina de “João Valentão”, um homem à primeira vista bruto, mas que
guarda em seu interior a capacidade de avistar a vida com admiração, nobreza e
calma. É quando João abstrai a simplicidade que alcança seu grau de mais
extrema beleza, numa variedade que permeia a construção desse samba de 1953,
lançado por Dorival Caymmi, e que inicia num rompante de intempestividade para
depois dar à luz a calmaria. “E assim adormece esse homem que nunca precisa
dormir pra sonhar, porque não há sonho mais lindo do que sua terra, não há…”
Saudade de Itapoã
(canção, 1948) – Dorival Caymmi
“É tão terna a descoberta da amizade”, dizia Caymmi sobre Zezinho, grande
companheiro que o acompanhou no Rio. Era também o apelido de um dono de rede
que dava “emprego àquele gente humilde” de Itapoã, praia contemplada em sua
bela canção, de 1948. Apresentado à região pelo pai, também tocador de violão,
piano e bandolim, além de funcionário público do estado da Bahia, Dorival
morreu de amores pela região e a carregou com profunda saudade: a falta daquilo
que se presenciou um dia e ainda habita, em outras cintilações. “Coqueiro de
Itapoã, coqueiro. Areia de Itapoã, areia. Morena de Itapoã, morena. Saudade de
Itapoã, me deixa…E joga uma flor no colo de uma morena de Itapoã”.
O Bem do Mar (canção
praieira, 1973) – Dorival Caymmi
“Um pescador tem dois amor, um bem na terra, um bem no mar”. O Bem do Mar de
Dorival Caymmi tem andamento similar ao movimento das ondas que carregam
sabores e dissabores da vida. A presença afetiva da mulher à beira da praia e
seu medo de perder o marido para o outro amor, à sua frente, do qual também
depende sua sobrevivência, e pode ser ele a levá-lo para sempre. “O bem do mar
é o mar é o mar…” Canção praieira lançada em 1973, intitulando o estilo,
característico, de Dorival Caymmi.
Maracangalha (samba,
1956) – Dorival Caymmi
“Maracangalha” é uma filosofia de vida. O discurso do homem livre que não se
limita a condições, e enxerga tudo com naturalidade, como possibilidades
viáveis. É assim o convite feito à Anália sem a imposição de ser aceito e sem o
sofrimento caso não ocorra, afinal tudo é passível de acontecimento e nada é
assim tão dramático. Por isso guarda uma sabedoria, acompanhado ou não da
companhia pretendida. Sendo assim, “Eu vou pra Maracangalha, eu vou. Eu vou de
uniforme branco, eu vou. Eu vou de chapéu de palha, eu vou. Eu vou convidar
Anália, eu vou. Se Anália não quiser ir eu vou só, eu vou só, eu vou só. Se
Anália não quiser eu vou só, eu vou só sem Anália mas eu vou…” Samba de 1956,
sucesso do carnaval daquele ano na interpretação de Dorival Caymmi, que segundo
próprio depoimento compôs de uma só vez, ao contrário do que ocorria com outras
músicas.
O Mar (canção, 1941) –
Dorival Caymmi
“O Mar” retrata a angústia e a desolação de uma vida assolada pela face trágica
da natureza. Rosinha de Chica perde seu amor e a razão à vida nos braços
impiedosos das águas itinerantes. Seu coro de despedida entoado frente ao algoz
é o consolo de uma existência que se extinguiu com o outro. Dorival Caymmi
narra a beleza destruidora da força que rompe o tempo e é capaz de impor
sentimentos diversos aos que se encontram com ele. Canção de 1941, lançada por
Dorival Caymmi e sua voz de trovar espumas, no encontro de céu e mar, suas
cordas seu violão, n’arrebentação calma da vida.
O Vento (canção
praieira, 1949) – Dorival Caymmi
A essência cíclica da vida, em movimentos ondulatórios como o vento, que
estimula com seu sopro a continuidade das coisas. “O Vento”, canção praieira de
1949 integra o estímulo inicial à consagração obtida. Talvez por essa razão,
Dorival tenha sempre entoado suas raízes, por saber que no início delas é que
se construiu a frondosa árvore que floriu no Rio de Janeiro, sempre com muitos
pingos baianos. “Vamos chamar o vento, vamos chamar o vento. Vento que dá na
vela. Vela que leva o barco. Barco que leva a gente. Gente que leva o peixe.
Peixe que dá dinheiro, curimã.” A palavra final é repetida em ritmo
folclorista. Como um mantra.
Modinha para Gabriela
(modinha, 1975) – Dorival Caymmi
Títulos não alcançam perfumes. O que se é não se altera, permanece súbito e
intransponível. Assim nasceu Gabriela, assim cresceu Gabriela, alheia aos
cartazes do mundo. Modinha de 1975, composta para novela da Rede Globo, a
música traz em tom debochado e irreverente o esplendor da personagem. Cantada
por Gal Costa e interpretada por Sônia Braga, tornou-se atemporal.
Noite de Temporal
(canção praieira, 1940) – Dorival Caymmi
Caymmi ambienta o clima da noite negra e medonha evocando dialetos típicos
africanos, presentes na cultura baiana através do misticismo, candomblé e
religiosidade. “Noite de Temporal” permanece em tempo de espera, inquietação,
dúvida…e a crença no regresso do filho que enfrentou o mar. Lançada em 1940,
canção praieira refletida em sombras castigadas pelo peso da chuva, foi uma das
primeiras registradas por Dorival Caymmi.
O que é que a baiana
tem? (samba, 1938) – Dorival Caymmi
O encontro com Carmen Miranda não poderia ser mais feliz e fortuito. Recém
chegado ao Rio de Janeiro em 1938, foi apresentado à estrela por Braguinha e
Almirante. Conquistar sua majestade teria sido tarefa árdua não fosse Caymmi um
especialista, que tratou de vesti-la com os adereços que merecia. Malícia e
malemolência costuram os rendados do vestido da baiana. Afinal “O que é que a
baiana tem?”
Acalanto (canção de
ninar, 1957) – Dorival Caymmi
“Acalanto” é uma canção de ninar composta por Dorival Caymmi em 1957 para sua
filha Nana Caymmi, que depois viria a cantá-la com ele. Com ternura e
serenidade, revela o incondicional do amor paterno. Alguém a dedicar seus
amores, carinhos, cuidados, para que o existir se valha.
Das Rosas (samba-valsa,
1964) – Dorival Caymmi
“Das Rosas” é um elogio à beleza. Uma canção otimista que presta homenagem ao
despertar das delícias. Com uma jogada de classe, Caymmi pratica caprichosa
estripulia ao oferecer aos ouvidos esse samba-valsa de 1964, cantado na
companhia do Quarteto em Cy e lançado em versão inglesa nos Estados Unidos,
traduzido e interpretado por Ray Gilbert.
Oração de Mãe Menininha
(samba, 1972) – Dorival Caymmi
“Oração de Mãe Menininha” é um agradecimento sincero de Dorival Caymmi à
iluminação que ele e a Bahia recebem da mãe-de-santo mais reverenciada de
Salvador, apregoando sua crença no candomblé. Feita em comemoração aos 50 anos
da ialorixá, Caymmi afirmou que o título da canção se pronuncia na boca do
povo: “de Mãe Menininha”, assim como dizem “de Santo Antônio”. Samba lançado em
1972 que marcou terreiro nas vozes de Gal Costa, Maria Bethânia e Clementina de
Jesus.
Saudade da Bahia (samba,
1957) – Dorival Caymmi
“Pobre de quem acredita na glória e no dinheiro para ser feliz”. É com saudade
do que não se compra que Caymmi confidencia um olhar nostálgico sobre a vida.
Agarrado às estrelas marítimas, nunca se prendeu a algas marinhas, que pegam
pelo pé e reservam somente um instante de ilusão e susto. A real presença do
intocável é que conduziu seus passos em águas profundas. As rasas, ele largou
para os interessados. Largado em uma rede imaginária Caymmi canta, em 1957: “Ai,
ai que saudade tenho da Bahia. Ai, se eu escutasse o que mamãe dizia”.
Eu não tenho onde morar
(samba, 1960) – Dorival Caymmi
Caymmi era filho de pai tocador de instrumento e mãe que cantava em casa. Um
imigrante italiano, a outra negra baiana. Durval e Aurelina. Seus filhos, Dori,
Nana e Danilo, seguiram o mesmo caminho, o último se especializando na flauta,
progressão do assovio, tão entoado nas introduções que levam o vento de Dorival
Caymmi. Exaltando a falta para justificar presença, Caymmi compôs em 1960 um
belo samba, “Eu não tenho onde morar”, onde a areia substitui a casa com todas
as conseqüências. Caymmi morou na música. Mora, na música: “Eu não tenho onde
morar, é por isso que eu moro na areia. Eu não tenho onde morar. É por isso que
eu moro na areia. Eu nasci pequenininho, como todo mundo nasceu. Todo mundo
mora direito, quem mora torto sou eu.”
Peguei um Ita no Norte
(samba, 1945) – Dorival Caymmi
A incerteza e a insegurança que provém de um futuro que acena ao longe, no
entanto próximo. É esse o mote que conduz a caravana de Dorival Caymmi rumo à
nova realidade. Os desafios que se encontrarão no Rio de Janeiro não serão os
mesmos que ele desvendou na Bahia, por isso ele guarda mais que lembranças, o
conselho da mãe: “Meu filho, ande direito, que é pra Deus lhe ajudar”. Quando
pegou um Itapé que depois ele resumiu em Ita e suspirou a despedida de Belém do
Pará, Dorival Caymmi levou para si os ensinamentos de violão do pai e do tio
Cici, e também as canções aprendidas de Ary Barroso, que depois ele conheceu
pessoalmente e gravou disco em parceria, Vicente Celestino, entre outros. Logo,
a idéia do curso de direito seria abandonada, pro bem da música brasileira.
Lançada em 1945 na voz de Dorival Caymmi, “Peguei um Ita no Norte” recebeu
regravação de Gal Costa.
Vatapá (samba, 1942) –
Dorival Caymmi
Dorival Caymmi distribui todos os ingredientes típicos do “Vatapá” nos versos
do samba criado por ele em 1942, e ainda adiciona um novo: a presença da nega
baiana que saiba mexer. Esse samba de dar água na boca de quem o escuta, mexe
com as cadeiras da nega e o paladar do baiano, temperando com camarão, pimenta,
castanha do pará, gengibre e cebola, o rico cardápio musical criado pelo mestre
Dorival Caymmi. É o vatapá baiano com dendê da boa terra, trazendo a influência
africana e seu gosto forte para a música brasileira. Agregando valor
inestimável à tradição misturada de sua gente.
Nem eu (samba-canção,
1952) – Dorival Caymmi
Que o homem controle o mundo, destrua tudo, exerça poder sobre o outro. O amor
escapa. Não pertence por desejo, não cai por gentileza, somente chega sem
imposição. Ás vezes se estabelece, noutras, desvia. “Quem inventou o amor não
fui eu. Não fui eu, não fui eu, não fui eu nem ninguém. O amor acontece na
vida, estavas desprevenida, e por acaso eu também. E como o acaso é importante,
querida. De nossas vidas a vida. Fez um brinquedo também.” Em 1952, Dorival
Caymmi fez samba-canção sobre a incapacidade humana de escolha, ao menos, sobre
o sentimento amor.
A Vizinha do Lado
(samba, 1946) – Dorival Caymmi
“A Vizinha do Lado” é um samba com sotaque carioca em que Dorival Caymmi almeja
a tentação proibida: “A vizinha quando passa com seu vestido grená, todo mundo
diz que é boa, mas como a vizinha não há. Ela mexe com as cadeiras pra cá, ela
mexe com as cadeiras, pra lá. Ela mexe com o juízo do homem que vai trabalhar”.
Lançada em 1946 pelo próprio autor, recebeu regravações de Chico Buarque, Lúcio
Alves, Vânia Bastos e Roberta Sá.
Sábado em Copacabana
(samba, 1952) – Dorival Caymmi e Carlos Guinle
Dorival Caymmi virou praça em Itapoã e chegou meio tímido ao Rio de Janeiro.
Até que resolveu homenagear uma importante praia da cidade em 1952, em parceria
com Carlos Guinle. Cantada por Lúcio Alves, “Sábado em Copacabana” virou
autêntica dedicatória e ganhou lugar cativo no coração dos cariocas. Esbanjando
o charme, Dorival recita: “Um bom lugar, pra encontrar, Copacabana. Pra
passear, à beira-mar, Copacabana”.
A Lenda do Abaeté
(canção praieira, 1948) – Dorival Caymmi
Dorival Caymmi aprendeu em Salvador a ilustração, ao trabalhar em jornais.
Aprendeu a música, ao ganhar em 1936 um concurso de carnaval. E aprendeu a
vender seu peixe e ler as lendas do seu povoado. “A Lenda do Abaeté”, de 1948,
reproduz o clima sombrio e tenebroso de mais uma canção praieira. Como é do
feitio das composições de Caymmi, aos poucos a escuridão ilumina-se em sua
beleza que se esconde detrás de espinhais folclóricos. E os corais revelam o
que o olho teme enxergar. Produz impacto tão forte que é preciso coragem para
se chegar lá. Um brilho ostensivo que encanta, admira e assusta. É ter
inocência de criança, e ver quanto linda a lagoa é.
É doce morrer no mar
(toada, 1941) – Dorival Caymmi e Jorge Amado
Só a morte a encerrar o ciclo da vida, admite continuação. O salgado mar pode
abrigar velas doces de madeira, corações que irão se afogar no colo de Iemanjá,
e descansar em novo abrigo. As águas que levam são as mesmas a trazer. Segue o
curso da vida, com quebradas, remendos, com belas embarcações, segue o curso,
vida. Compuseram dois velhos amigos, Jorge Amado e Dorival Caymmi, “É doce
morrer no mar”, 1941. Costumavam ser confundidos. Olhos de sal, bigode de
espuma. Bahia na boca. Estatura larga, porém mediana. Rio comprido que
desemboca no mar e segue seu fluxo intermitente, alheio aos desfeitos dos
homens, d’areia, do vento que possa lhe machucar. Segue, e se esparsa
espontâneo. Cada vez mais grudado no sal dos cabelos, do corpo, da essência
perene em gotas de eternidade.
Raphael Vidigal